A rotina de um aposentado que, há anos, divulga indícios do fim do mundo no trem de São Paulo em um jornalzinho cristão-filosófico escrito por ele mesmo
Monique Oliveira
synthorchestra.org
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A cada quinze dias, o aposentado Haroldo*, de 68 anos, pega o trem em Itapevi, interior de São Paulo, para divulgar o periódico em que descreve, minuciosamente, o despropósito que é anunciar o fim dos tempos: ele já aconteceu. Na publicação, Haroldo adverte sobre a alienação da internet, das drogas e dos maus pensamentos. Quando eu o conheci, no começo de dezembro, sua pauta era a os malefícios da televisão. Comprovadamente, garante ele, o instrumento do Anticristo.
O mais curioso é que Haroldo nada diz. Com uma lousa e alguns panfletos acoplados ao quadro, é assim que ele chama a atenção dos passageiros. “As pessoas ficam curiosas e me abordam”, diz ele. “Fico em silêncio e converso com aqueles que se interessam”. O aposentado, garante, não está ligado à religiões e deixa o telefone de sua própria residência para mais esclarecimentos.
E, de fato, a abordagem do aposentado é uma mescla de prenúncios apocalípticos com perspectivas filosóficas mais abstratas, permeadas notoriamente por uma vasta experiência de vida. Há algo de crença. De dogmatismo -mas mesmo essa obstinação desmedida é tenra, sábia, entrecortada por algum jogo de cintura e humor.
Inspirado em Sócrates, o instrumento do senhor Haroldo para alcançar a verdade é a provocação e a construção do conhecimento por meio do universo do discípulo -cuja conclusão só é possível graças ao diálogo. “Quantas horas por dia você vê televisão?”, ele pergunta. “Ou você fica no Facebook?”, questiona.
No artigo que distribui, Haroldo é ainda mais perspicaz. Ele cita publicações de prestígio, como a revista alemã “Der Spiegel” para corroborar suas teses. “A luz eletrônica emitida pelos tubos de raios catódicos do televisor literalmente fere as pares do cérebro”, escreve. “Através de refinados efeitos de luz, a tevê tem efeito tão psicodélico quanto uma viagem de LSD”.
- Como isso se dá?, perguntei a ele.
- Moça, você sabe o que é psicodelia?
- Não.
- É aquilo que confunde o psiquismo e a consciência -fruto de uma dissolução hipnótica. E as cores da televisão, como o LSD, confundem todos os sentidos.
A televisão gera uma alienação depressiva. É uma forma de comportamento contrária ao ser humano, Já que impõe o que ele, na verdade, nem quer.
- E o homem sabe o que quer?
- Minha filha, o homem só precisa crer. E quando ele vê imagens, ele deixa de crer. Crer é não ver. É imaginar. Ter fé.
- Ouviu falar que o calendário maia proferiza que o mundo vai acabar agora em dezembro?
- Não me interessa. Já estou fora desse mundo há tempos.
*Os nomes foram trocados, a pedido.